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A importância da criminalização da corrupção privada no Brasil: Desafios e estratégias atuais

Aline Meyer e Samantha Benedetti

A corrupção é um fenômeno que transcende os limites entre os setores público e privado, exigindo uma abordagem abrangente para preservar a integridade e promover práticas éticas em todos os níveis da sociedade. Especificamente no contexto brasileiro, a criminalização da corrupção privada tem se mostrado um desafio complexo, podendo trazer implicações significativas não apenas para o desenvolvimento econômico, mas também para a justiça social e para a reputação das organizações.

Numa análise ampla, a corrupção privada refere-se a práticas antiéticas que podem ocorrer no setor privado, envolvendo tanto as organizações empresariais quanto seus colaboradores e outros agentes privados. Essas práticas geralmente buscam obter vantagens indevidas, influenciar decisões ou alcançar benefícios indevidos por meio de manipulação, suborno, fraude e outras formas de comportamento antiético.

As práticas de corrupção privada podem ser diversas e complexas, trazendo consequências prejudiciais para a integridade das organizações, para justiça nos negócios e, igualmente, para a confiança na sociedade em geral. Dessa forma, alguns exemplos comuns e não exaustivos de corrupção privada incluem:

  • Oferecimento, promessa, doação, aceitação ou solicitação de vantagens indevidas para influenciar decisão de colaborador de organização ou de terceiros.
  • Manipulação de processos de licitação privada, adulteração de contratos ou concessões em ambientes empresariais com o objetivo de obter benefícios financeiros indevidos.
  • Situações em que colaboradores da empresa tomam decisões que beneficiam interesses pessoais em detrimento de interesses da empresa, muitas vezes resultando em prejuízos financeiros.
  • Favorecimento indevido ao empregar familiares ou amigos em cargos estratégicos sem critérios meritocráticos.
  • Apropriação indevida de recursos da empresa por meio de manipulação de contas, falsificação de registros contábeis ou desvio de fundos, resultando em apropriação indevida de recursos da empresa.
  • Oferecimento de presentes, viagens ou hospitalidades excessivas a clientes com o objetivo de influenciar decisões comerciais.

No Brasil, a discussão sobre a corrupção tradicionalmente se concentra no setor público, com raízes históricas que remontam ao Código Penal de 1940, que tipifica em seus artigos 317 e 333 as condutas relacionadas à prática de corrupção no setor público. Em síntese, o artigo 317 trata da corrupção passiva, criminalizando o servidor público que solicita, aceita ou recebe vantagem indevida em decorrência de sua função, enquanto o artigo 333 trata da corrupção ativa, penalizando aquele que oferece ou promete vantagem indevida a um servidor público, com o objetivo de obter benefícios indevidos.

Nos últimos 10 anos, o país tem dado passos significativos no combate à corrupção no setor público, com o advento da Lei 12.846/2013, a chamada Lei Anticorrupção Brasileira, que possui como principal objetivo a responsabilização das pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a administração pública. Ao impor sanções severas, como multas expressivas e a possibilidade de publicação de condenações, a Lei Anticorrupção Brasileira visa a dissuasão de práticas corruptas e a promoção de um ambiente de negócios ético, transparente e em conformidade com os princípios da integridade e legalidade.

De outro lado, contrastando com a atenção dada à corrupção pública, a corrupção privada ainda carece de análises sistemáticas no contexto brasileiro. Esta prática, embora menos visível que a corrupção no setor público, traz efeitos profundos e disseminados na sociedade e no ambiente de negócios podendo distorcer mercados, criar concorrência desleal, aumentar custos para as empresas e minar a confiança na integridade dos negócios. Além disso, práticas corruptas no meio corporativo também podem gerar a redução da produtividade e ocasionar na perda de confiança dos investidores, afetando a reputação das empresas perante o mercado.

A corrupção privada no contexto brasileiro

O Brasil não possui legislação abrangente que criminalize a corrupção privada, porém, algumas iniciativas e projetos de lei propõem a adoção de medidas para endereçar o tema.

Em 2003, foi criada a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), principal rede de articulação institucional brasileira para o arranjo, discussões, formulação e concretização de políticas públicas e soluções de enfrentamento à corrupção e à lavagem de dinheiro. A Estratégia conta com aproximadamente 90 instituições públicas pertencentes aos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e o Ministério Público, abrangendo também as esferas federal, estadual e, em alguns casos, municipal – e entidades[1].

Em 2018 e 2022, a ENCCLA propôs medidas em atenção ao combate da corrupção no setor privado:

  • Em 2018, a ENCCLA incluiu como uma de suas estratégias, a elaboração de propostas de medidas voltadas ao combate à corrupção privada, que resultou em Anteprojeto de Lei para inserir o tipo penal de corrupção privada na Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, além da identificação de boas práticas de integridade envolvendo pessoas jurídicas de direito privado[2].
  • Em 2022, a ENCCLA propôs medidas para fortalecer o enfrentamento da corrupção privada, com a elaboração de diagnóstico sobre os instrumentos e práticas nacionais e internacionais e publicou um Guia de Medidas, cujo trabalho revelou que existem inúmeras medidas extrapenais de combate à corrupção previstas no ordenamento jurídico, muitas delas subutilizadas por desconhecimento de sua estrutura ou má definição estratégica de aplicação[3].

Em 2005, o Brasil aderiu à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC), por meio da qual se comprometeu a implementar medidas eficazes para prevenir e combater a corrupção em diversos setores, incluindo o privado. A UNCAC assume uma abordagem abrangente ao incentivar os países signatários a criminalizarem não apenas práticas corruptas no setor público, mas também aquelas no âmbito privado. Embora a regulamentação da corrupção privada pelos países signatários não seja compulsória, as diretrizes propostas para sua criminalização e regulamentação destacam a importância de se combater ativamente a prática.

No âmbito de propostas legislativas, nos últimos anos, foram apresentados projetos de lei com vistas a regulamentar a penalizar a prática de atos de corrupção privada, sendo a maioria apensada ao Projeto de Lei 3.163/2015, que define como crime a corrupção praticada no âmbito do setor privado e dá outras providências. Esse projeto tramita na Câmara dos Deputados e aguarda parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) desde outubro de 2015. Sua última ação legislativa ocorreu em junho de 2023, quando o Deputado Gilson Marques foi designado relator do projeto na CCJC.

No ano de 2023, o Brasil deu o primeiro passo concreto no âmbito da criminalização da corrupção privada com a instituição da Lei 14.597/2023, conhecida como Lei Geral do Esporte, que definiu o crime de corrupção privada no esporte em seu artigo 165:

Art. 165. Exigir, solicitar, aceitar ou receber vantagem indevida, como representante de organização esportiva privada, para favorecer a si ou a terceiros, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de vantagem indevida, a fim de realizar ou de omitir ato inerente às suas atribuições.

O dispositivo prevê pena de reclusão de 2 a 4 anos, e multa. Nas mesmas penas incorre quem oferece, promete, entrega ou paga, direta ou indiretamente, ao representante da organização esportiva privada, vantagem indevida.

Ainda que restrito ao âmbito esportivo, tal avanço demonstra a preocupação com o tema e traz a esperança de que nos próximos anos, essa iniciativa seja multiplicada para outros âmbitos e setores econômicos.

Abordagem atual

Considerando a ausência de legislação abrangente que sancione a prática da corrupção no setor privado, assim como outras nações que também não implementaram regulamentações específicas para essa finalidade, o Brasil dispõe de leis esparsas que podem ser utilizadas na tentativa de combater essa prática, conforme exemplificadas no quadro abaixo:

Decreto-Lei 5.452/1946Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho Dispõe no artigo 482 que constituem justa causa para a rescisão do contrato de trabalho pelo empregador ato de improbidade; incontinência de conduta ou mau procedimento; e a negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço.
Lei 7.492/1986Define os crimes contra o sistema financeiro nacional, e dá outras providências Apesar de poder ser aplicada a certos tipos de corrupção privada, está limitada a regular as instituições financeiras.
Lei 9.179/1996  Regula direitos e obrigações relativos à propriedade intelectual Prevê no artigo 195, parágrafos “IX” e “X” que: comete crime de concorrência desleal quem “dá ou promete dinheiro ou outra utilidade a empregado de concorrente, para que o empregado, faltando ao dever do emprego, lhe proporcione vantagem” e, em contrapartida, quem “recebe dinheiro ou outra utilidade, ou aceita promessa de paga ou recompensa, para, faltando ao dever de empregado, proporcionar vantagem a concorrente do empregador”.
Lei 10.406/2002Código Civil Brasileiro Prevê no artigo 1.010, parágrafo 3º, a possibilidade de responsabilização de sócio que, atuando de forma contrária ao interesse da sociedade, aprove, com seu voto, operação de negócio a ela prejudicial. No mesmo sentido, o artigo 1.011 do Código Civil dispõe que “o administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”.
Lei 12.529/2011Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; e dá outras providências No parágrafo 3º do artigo 36, são elencadas as condutas que caracterizam infração da ordem econômica, como, “acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente preço de bens ou serviços”.

A necessidade de criminalizar a corrupção privada é crucial para fomentar um ambiente empresarial ético, íntegro e transparente no Brasil. Embora seja possível recorrer a legislações fragmentadas para combater essa prática, a importância de uma legislação abrangente não pode ser subestimada. Dessa forma, o Congresso Nacional, em conjunto com a sociedade civil, deve atuar decisivamente para preencher as lacunas existentes e criar um arcabouço legal que desencoraje e penalize de maneira efetiva a corrupção privada, visando a construção de uma cultura empresarial íntegra que contribua para o desenvolvimento sustentável do país.

Enquanto o ambiente legislativo enfrenta desafios, as organizações podem desempenhar um papel proativo na autorregulação por meio de programas de compliance, fortalecendo medidas internas para prevenir, detectar e remediar casos de corrupção privada. Nesse contexto, programas de compliance robustos e códigos de ética fortalecem a integridade empresarial, atuando como um diferencial competitivo.


[1] Disponível em: https://enccla.camara.leg.br/quem-somos#:~:text=A%20ENCCLA%20%E2%80%93%20Estrat%C3%A9gia%20Nacional%20de,e%20%C3%A0%20lavagem%20de%20dinheiro. Acesso em 14/02/2024.

[2] Disponível em: https://enccla.camara.gov.br/acoes/acoes-de-2018-1. Acesso em 14/02/2024.

[3] Disponível em: https://enccla.camara.gov.br/acoes/arquivos/resultados-enccla-2022/acao-11-2022-guia-de-medidas-para-fortalecer-o-enfrentamento-da-corrupcao-privada-1. Acesso em 14/02/2024.


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