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Critérios para valoração de provas produzidas em sede de Procedimento Administrativo de Responsabilização: o caso do PAR nº 00190.109086/2020-05 e a fundamentação baseada em provas indiciárias

Joyce Serra e Ana Paula Coutinho

A Controladoria-Geral da União (“CGU”) divulgou, em janeiro deste ano, documentos produzidos no âmbito do Processo Administrativo de Responsabilização (“PAR”) nº 00190.109086/2020-05[1], que investigou o suposto cometimento das infrações previstas no artigo 5º, IV, alíneas “a” e “b”, da Lei 12.846/2013. As violações investigadas teriam ocorrido mediante apresentação de proposta de orçamento inflacionada pela empresa indiciada a pedido de um competidor, de modo a beneficiá-lo em processo de compra pública.

O PAR em questão foi arquivado em razão de insuficiência de provas, com fundamento em parecer da Consultoria Jurídica[2]. O julgamento suscitou discussões relevantes acerca da valoração de provas no contexto de PARs, em especial, o uso de provas indiciárias e aspectos relacionados ao tratamento da dúvida, conforme será detalhado.

1.O PAR nº 00190.109086/2020-05: alegações e contexto fático

De acordo com o Relatório Final, a empresa foi indiciada em razão de supostamente: (i) ter apresentado proposta de orçamento a pedido de uma concorrente, de modo a fraudar, mediante combinação, o caráter competitivo da licitação, e (ii) ter beneficiado empresa concorrente ao apresentar proposta de orçamento inflacionada, e fraudar o ato licitatório de definição do preço-base do certame. Tais fatos configurariam, respectivamente, atos ilícitos previstos nas alíneas “a” e “b” do artigo 5º, IV, da Lei 12.846/2013.

Os fatos teriam ocorrido no contexto dos atos de formação do preço-base da licitação. Esgotada a fase de elaboração e aprovação do Termo de Referência, teve início a fase de orçamento, em junho de 2015. A autarquia recebeu propostas de 4 empresas, dentre as quais a empresa indiciada, a qual ofereceu a proposta de maior valor dentre as participantes. Note-se que a empresa indiciada não se sagrou vencedora da licitação e o contrato para prestação dos serviços foi firmado com a empresa vencedora em 2015.

Em 2016, referido contrato foi renovado. Nesse contexto, a proposta apresentada pela empresa indiciada em 2015, no âmbito da formação do preço-base da licitação referente ao primeiro contrato, foi utilizada como argumento para concluir pela vantajosidade da prorrogação do contrato que ocorreu em 2016, gerando prejuízo ao Poder Público.

A Comissão de Processo Administrativo de Responsabilização (“CPAR”) atuante concluiu pela condenação da empresa indiciada por fraude ao caráter competitivo da licitação e ao ato licitatório de definição do preço-base da licitação.

Para sustentar a condenação, foram apresentadas mensagens coletadas em investigação interna conduzida pela empresa vencedora do certame, que foram compartilhadas pela Securities and Exchange Comission (SEC)[3].

2. O uso de provas indiciárias no PAR nº 00190.109086/2020-05

De acordo com o Parecer da Consultoria Jurídica da CGU (“Parecer”), as conclusões do Relatório Final estariam baseadas, do ponto de vista probatório, nas mensagens trocadas entre representantes da empresa vencedora do certame e da empresa indiciada. Tais mensagens demonstrariam o suposto conluio entre as empresas e confirmariam a participação da empresa indiciada na fraude ao caráter competitivo do procedimento licitatório e apresentação de um orçamento superfaturado no âmbito da formação do preço-base.

Ao tratar das alegações de fraude ao caráter competitivo do procedimento licitatório, inicialmente, o Parecer da Consultoria Jurídica classificou tais mensagens como “presunções”[4], e afirmou não ser possível concluir, apenas com base nelas, a ocorrência de ajuste de condutas entre as empresas sobre a proposta apresentada pela empresa indiciada.

Em seguida, afirmou-se que, ainda que se entendesse que as mensagens em análise no caso concreto seriam indícios, estes não seriam suficientes à condenação, tendo em vista que “constituem um indício isolado”[5]. Nesse sentido, o parecer argumenta que o caráter sancionatório do Processo Administrativo de Responsabilização compromete o intérprete “ao dever de obediência a critérios mais rígidos para a apreciação da prova”[6], destacando que, para que subsidiem uma condenação, os indícios não podem ser contrariados por contra indícios ou por prova direta[7].

Por sua vez, ao tratar da alegação de fraude ao ato licitatório de definição do preço-base, o Parecer sublinhou a insuficiência das provas colhidas sobre o suposto conluio e discorreu sobre os contra indícios identificados no caso concreto, os quais afastariam o nexo causal entre o dano e o ato de apresentação de proposta para formação do preço-base por parte da empresa indiciada, de modo a inviabilizar a condenação.

O primeiro argumento aventado foi o de que não haveria evidência do benefício da empresa indiciada no caso. Nesse sentido, o Parecer destacou a ausência de evidências que indicassem uma “proposta de cobertura” ou qualquer outro tipo de benefício à empresa indiciada. Foi ponderado que a evidência do benefício não seria essencial à tipificação do ilícito, não obstante, sua ausência devesse ser considerada na análise dos elementos indiciários reunidos no caso concreto[8].

O segundo conjunto de argumentos se refere ao fato de que a empresa indiciada não teve participação no processo de compra relativo à renovação contratual que teria ensejado prejuízos ao Poder Público em 2016. Nesse contexto, o Parecer detalhou os mecanismos de que a Administração disporia para evitar eventuais prejuízos decorrentes de sobrepreço, e argumentou que a não utilização de tais mecanismos no caso concreto indica a potencial responsabilidade dos agentes da Administração em relação aos resultados lesivos para o Poder Público[9].

Os referidos argumentos conduziram à afirmação de ausência de nexo causal entre a proposta de valor apresentada pela empresa indiciada no ato de formação do preço-base da licitação para o contrato firmado em 2015 e o prejuízo sofrido pelo Poder Público na renovação do contrato ocorrida em 2016[10].

Adicionalmente, um terceiro argumento foi a apresentação, pela defesa, de fatores que “podem”[11] explicar a diferença no preço das propostas enviadas para o processo de compra, o qual será objeto de análise em separado no próximo tópico.

Para concluir, o Parecer argumentou pela possibilidade de condenação com base em indícios no contexto de PARs, sobretudo quando a infração é “de tal natureza que deixa pouco ou nenhum vestígio probatório”[12], desde que os indícios sejam “sólidos”[13] e “corroborados por elementos de convicção mais concretos”[14]. São entendidos como sólidos os indícios que subsistem ao confronto de “contra indícios”.

Note-se, ainda, que o Despacho nº 00558/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU (“Despacho”), que aprovou o Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, estabeleceu, em síntese, que “presunções e indícios de ilicitude por si só não são suficientes à condenação”[15].

Sobre a alegação de fraude ao caráter competitivo do procedimento licitatório, o Despacho determinou que os pontos trazidos no Relatório Final são “presunções e suposições” e faltariam indícios confirmatórios suficientes. Por sua vez, quanto à alegação de fraude ao ato de formação do preço-base da licitação, o Despacho considerou não haver provas de superfaturamento da proposta oferecida pela empresa indiciada, o que afastaria o nexo de causalidade entre a proposta em questão e a renovação do contrato que ensejou o prejuízo ao Poder Público.

O Parecer da Consultoria Jurídica fundamentou a decisão absolutória ao concluir pela insuficiência de provas para a condenação. Nesse sentido, embora não tenha mencionado expressamente a temática do tratamento da dúvida, são utilizados dois argumentos correlatos a ela para fundamentar a absolvição.

O Parecer afirmou que se aplicam “subsidiariamente ao PAR”[16] os princípios do in dubio pro reo e da presunção de inocência, ante à insuficiência do conjunto probatório reunido, para absolver a empresa indiciada. Não há detalhamento acerca do racional da aplicação subsidiária dos referidos princípios.

Note-se ainda que o Despacho nº 00558/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, que aprovou o Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, trata da absolvição sem invocar os referidos princípios, afirmando apenas que “presunções e indícios de ilicitude por si só não são suficientes à condenação”.

O segundo argumento relacionado ao tratamento da dúvida foi a valoração das observações da defesa no que tange à alegação de fraude ao ato de formação do preço-base da licitação. Note-se que, ao tratar da argumentação apresentada pela defesa, o Parecer mencionou que foram trazidos fatores que “podem”[17] explicar a diferença no preço das propostas apresentadas no processo de compra em questão.

Nesse contexto, o uso da palavra “podem” indica que os fatores trazidos pela defesa não necessariamente comprovariam a existência de uma justificativa para a diferença no preço das propostas. Não obstante, tais fatores teriam criado dúvida sobre o alegado superfaturamento do orçamento apresentado pela empresa indiciada, e, no caso concreto, tal dúvida seria um argumento adicional para afastar a condenação.

Note-se que esse raciocínio – que beneficia a defesa em caso de dúvida, de modo a contribuir para o afastamento da condenação – contrasta com a posição do Relatório Final da CPAR no caso específico, que indica, como argumento convergente à condenação, que a defesa não apresentou evidência “que consiga demonstrar que o preço [apresentado pela empresa indiciada] foi construído de maneira fundamentada e concatenada”[18].

Não há determinação legal, em especial, na Lei 12.846/2013 sobre os aspectos da valoração dos elementos indiciários e do tratamento da dúvida no âmbito de PARs. Por sua vez, o Manual de Responsabilização de Entes Privados, emitido pela CGU, não se ocupa expressamente do tema do tratamento da dúvida e, sobre a valoração de indícios, afirma que “indícios e presunções concatenados de forma lógica” podem fundamentar julgamentos de PAR[19]. Por outro lado, o mesmo Manual não indica circunstâncias ou regras específicas para utilização da prova indiciária nos julgamentos.

Nesse sentido, verifica-se uma potencial lacuna no regramento específico de PARs, no que diz respeito a alguns temas probatórios, a qual é e será inevitavelmente enfrentada e preenchida no exercício da função sancionadora, apesar dos julgamentos proferidos não terem efeito vinculante.

O julgamento do PAR nº 00190.109086/2020-05 contribui com o enfrentamento da lacuna identificada, ao propor critérios para a apreciação da prova que consideram o caráter sancionatório do PAR. Naturalmente, como o caso em comento não esgota ou propõe um tratamento pacífico ao tema, resta acompanhar a evolução do entendimento nos próximos julgamentos sobre o assunto.

O presente artigo possui finalidade meramente informativa e sem caráter de aconselhamento jurídico. As informações contidas neste artigo não devem ser utilizadas ou aplicadas indistintamente a fatos ou circunstâncias concretas sem consulta prévia a um advogado. As opiniões contidas neste artigo são as expressadas pelo(s) respectivo(s) autor(es) e podem não necessariamente refletir a opinião do escritório ou dos clientes do escritório; e estão sujeitas a alteração sem ulterior notificação.


[1] Foram disponibilizados o Relatório Final emitido pela Comissão, o Parecer da Consultoria Jurídica da CGU (Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, Despacho nº 00558/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU e Despacho nº 00842/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU) e publicação da Decisão no Diário Oficial da União. (Controladoria-Geral da União. Processo Administrativo de Responsabilização nº 00190.109086/2020-05. Disponível em: <https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/69363>. Acesso em: 15/01/2023).

[2] Trata-se do Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, aprovado pelo Despacho nº

00558/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU e pelo Despacho nº 00842/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU da Consultoria Jurídica da CGU.

[3] Considerando a confidencialidade das informações, o conteúdo das mensagens não está disponível no parecer da Consultoria Jurídica ou no Relatório Final da Comissão, a não ser por breves paráfrases e menções às pessoas envolvidas (Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 5).

[4] Nesse ponto, o Parecer utiliza-se dos critérios estabelecidos por Guilherme de Souza Nucci para diferenciar indícios e presunções (Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 5).

[5] Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 5

[6] Idem

[7] Nesse contexto, o Parecer invoca o julgamento do Habeas Corpus nº 97.781/PR, do Supremo Tribunal Federal (Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 5).

[8] O parecer menciona que “a análise dos elementos indiciários deve ser realizada conforme o contexto em que apresentados, levando em conta aspectos inerentes ao mercado e à atuação das empresas em determinado seguimento, bem como o modo de agir das empresas em operações cartelizadas.” (Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 7).

[9] O parecer afirma que “a CPAR imputou a [empresa indiciada] uma responsabilidade que não era dela, mas dos agentes da Administração” e menciona dois mecanismos que a Administração Pública tinha para evitar os resultados: (i) a “Secretaria Federal de Controle Interno (SFC/CGU), por meio da Nota Técnica nº 1416/2019/GAB DS/DS/SFC, de 14/08/2019 (SEI 1711148), entendeu como errada a prorrogação do contrato pelo [órgão público], em razão de não se tratar de serviço continuado”; (ii) ” na Instrução Normativa SLTI/MPOG nº 5, de 27 de junho de 2014, vigente à época da contratação, o parágrafo 6º, do artigo 2º, determinava a desconsideração dos preços inexequíveis ou excessivamente elevados, conforme critérios fundamentados e descritos no processo administrativo”. (Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 6).

[10] Ainda tratando sobre o argumento de ausência de liame causal, o Parecer da Consultoria Jurídica invoca o Manual de Responsabilização de Entes Privados em trecho que aborda a exigência, para responsabilização, “de nexo causal com a atuação direta ou indireta da empresa, por meio da demonstração de que o ato fora praticado no interesse ou benefício, exclusivo ou não, da pessoa jurídica”. Ademais, em um exercício de análise de nexo causal, o Parecer destaca que “ainda que se retirasse o valor da proposta apresentada […], a média dos preços levantados ficaria em torno de 14 milhões de reais, valor que é superior ao montante contratado pelo [[órgão público] […]” (Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 7).

[11] Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 7.

[12] Nesse contexto, o Parecer cita o entendimento do Tribunal de Contas da União no Acórdão TCU 57/2003 (Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 8).

[13] Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 8.

[14] Idem.

[15] Despacho nº 00558/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 1.

[16] Despacho nº 00558/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 1.

[17] Parecer nº 00131/2022/CONJUR-CGU/CGU/AGU, p. 7.

[18] Relatório Final da CPAR no bojo do PAR 00190.109086/2020-05, p. 13

[19] O Manual de Responsabilização de Entes Privados cita o artigo 239 do Código de Processo Penal, bem como julgados do STF em matéria criminal para sustentar a conclusão. (Controladoria-Geral da União. Manual de Responsabilização de Entes Privados. Brasília, Atualizada até março de 2022. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/68182>. Acesso em 27/01/2023.)


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