Joyce Serra e Ana Laura Santana
Em 09 de setembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) decidiu por maioria pela constitucionalidade do convênio ICMS 134/16 emitido pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (“Confaz”). Esse convênio, firmado entre os governos estaduais integrantes do Confaz, estabelece, para agentes financeiros, obrigações de fornecimento de informações de operações realizadas por pessoas físicas e jurídicas via pix, cartões de débito e de crédito e demais operações realizadas no pagamento por meio eletrônico do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – (“ICMS”).
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (“ADI”) 7.276 foi ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (“Consif”) e pleiteava que fossem declarados inconstitucionais os dispositivos do Convênio ICMS 134/16 que impunham aos agentes financeiros a obrigação de fornecer informações de clientes às unidades federadas para cumprimento de obrigações acessórias no recolhimento do ICMS, além de suscitar a constitucionalidade da regulamentação do referido Convênio, consubstanciada no Manual de Orientações de leiaute da Declaração de Informações de Meios de Pagamentos (“DIMP”). Ao tratar da (in)constitucionalidade dessa obrigação, a referida ADI levantou discussões sobre o necessário equilíbrio entre a proteção ao sigilo bancário e o cumprimento de obrigações tributárias por agentes financeiros para dar eficiência à fiscalização tributária.
Os dispositivos que suscitaram a discussão da constitucionalidade são as cláusulas segunda, terceira, quarta e sexta, parágrafo único, do Convênio ICMS 134/16[1],bem como sua regulamentação, que, de maneira resumida, trazem as seguintes determinações: (i) exigência de um documento fiscal, conforme a legislação tributária para todas as transações de débito, crédito e outros meios de pagamento; (ii) exigência de envio, por parte das instituições financeiras, de informações sobre transações às unidades federativas, seguindo um formato específico; (iii) permissão para a Receita Federal e as Secretarias da Fazenda solicitarem informações sobre beneficiários e usuários, sem restrições territoriais; e (iv) estabelecimento de uma nova forma de apresentação das informações sobre transações, com compartilhamento de dados entre as unidades federativas, conforme um layout definido.
De acordo com o pleito da inicial da ADI 7.276, os referidos dispositivos ofenderiam o princípio da reserva legal, direitos fundamentais à privacidade e à intimidade, bem como dispositivos que estabelecem garantias processuais para a quebra do sigilo bancário[2].
No voto que prevaleceu no julgamento, a Relatora, Ministra Carmen Lucia, argumentou que os deveres instrumentais estabelecidos pelo Convênio ICMS 134/2016 não representam uma quebra do sigilo bancário, uma vez que o que ocorre de fato é uma transferência do dever de sigilo das instituições financeiras para a administração tributária dos Estados e do Distrito Federal. Assim, o acesso das autoridades fiscais a dados que são considerados sigilosos caracteriza uma troca de responsabilidades em relação à preservação o sigilo, com utilização dos dados pela administração tributária exclusivamente para o exercício de suas funções fiscais. A Ministra Carmen Lúcia também relembrou o entendimento do STF, em outras decisões sobre matéria de sigilo bancário e compartilhamento de dados com as autoridades fiscais, como por exemplo, no julgamento conjunto das ADIs 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859, destacando que o Tribunal já decidiu anteriormente que instituições financeiras podem transferir dados bancários à administração tributária sem que isso configure ofensa ao direito à intimidade. Por último, a Ministra Relatora ponderou que impedir a administração fazendária dos Municípios e do Distrito Federal de obter informações de instituições financeiras sobre as operações efetuadas pelos usuários caracteriza ofensa à autonomia e isonomia que prevalece entre os entes federados, observando que essa colaboração entre os diferentes níveis de governo é crucial para uma administração tributária mais eficaz. Seguiram o voto da Ministra Relatora os Ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Flávio Dino, Dias Toffoli e Luiz Fux. Por sua vez, os Ministros Gilmar Mendes e Cristiano Zanin divergiram.
Em voto-vista, o Ministro Gilmar Mendes analisou o artigo 5° da Lei Complementar 105/01, que dispõe que instituições financeiras prestarão informações de operações efetuadas pelos usuários, em legislação que estabelece parâmetros essenciais para a transmissão de informações confidenciais à Administração Tributária federal. Com base nessa análise, o Ministro pontuou que o Convênio ICMS 134/2016 aborda a prestação de informações de transações pelas instituições financeiras às Administrações Tributárias estaduais, mas não versa sobre a limitação de tratamento de dados e informações confidenciais dos usuários pelos Estados. Justamente por não haver um conjunto de normas limitadoras que garantam o equilíbrio entre o poder de vigilância e a proteção da intimidade, o Ministro entendeu que os dispositivos em discussão na ADI são inconstitucionais. Ademais, o Ministro enfatizou que é necessária a existência de uma norma de status legal que regulamente o acesso, de forma similar à regulamentação existente para a União. Dessa forma, entendeu o Ministro Gilmar Mendes que o Convênio ICMS 134/2016 não supre a ausência de previsão normativa específica para o acesso sistemático nas Administrações Fazendárias estaduais, e por isso, sua aplicação viola os artigos 5º, inciso II, e 145, § 1º, da Constituição.
Por sua vez, o Ministro Cristiano Zanin, afirmou que as informações requisitadas no Convênio ICMS 134/2016 se distanciam da materialidade do ICMS, que incide sobre a circulação de mercadorias e serviços de transporte e comunicação. O Ministro enfatizou que a exigência das informações financeiras não é proporcional, principalmente quando comparada à obrigação de emissão de notas fiscais, que já fornece as informações necessárias sobre as operações sujeitas ao ICMS e respectivos impostos a serem pagos. Dessa forma, o Ministro Cristiano Zanin entendeu que impor a prestação dessas informações por norma infralegal contrariaria dispositivos constitucionais e, além de ultrapassar os limites estabelecidos no artigo 145, § 1º, da Constituição Federal, seria desproporcional, de forma a comprometer direitos fundamentais. Seguiram a divergência os Ministros Nunes Marques, André Mendonça e Luís Roberto Barroso, que, no entanto, foram vencidos pela maioria dos votos.
Ao tratar de questões fundamentais sobre o equilíbrio entre a garantia de efetividade na fiscalização tributária e a proteção do sigilo bancário em contextos de transferência de dados, a decisão do STF se inclina para a efetividade do monitoramento tributário, não se podendo desconsiderar os votos divergentes que reafirmam a necessidade de uma proteção rigorosa do sigilo dos dados de clientes de instituições financeiras. Resta acompanhar as controvérsias relacionadas às transferências de dados, tema que deve seguir presente nas discussões do STF.
Para mais informações, acesse o Acórdão na íntegra aqui.
[1] Cláusula segunda A transação ou intermediação de vendas, de prestação de serviços ou de outros pagamentos efetuada com cartões de débito, crédito, de loja (“private label”), transferência de recursos, transações eletrônicas do Sistema de Pagamento Instantâneo, e demais instrumentos de pagamento eletrônico, deve estar vinculada à respectiva emissão de documento fiscal, conforme disposto na legislação tributária da respectiva unidade federada.
Cláusula terceira As instituições e os intermediadores financeiros e de pagamento, integrantes ou não do Sistema de Pagamentos Brasileiro – SPB, fornecerão às unidades federadas alcançadas por este convênio, até o último dia do mês subsequente, todas as informações relativas às operações realizadas pelos beneficiários de pagamentos que utilizem os instrumentos de pagamento de que trata este convênio, conforme leiaute previsto em Ato COTEPE/ICMS.
Cláusula quarta A Secretaria da Receita Federal do Brasil e as Secretarias de Estado da Fazenda, Receita, Finanças, Economia ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal, em virtude de procedimento administrativo, poderão solicitar, independente da territorialidade, em arquivo impresso ou eletrônico, as informações dispostas nas cláusulas terceira e terceira-A deste convênio, bem como poderão solicitar informações complementares dos beneficiários de pagamento, estabelecimentos e usuários de seus serviços.
Cláusula sexta A Secretaria da Receita Federal do Brasil e as unidades federadas estabelecerão novo formato e leiaute para o fornecimento das informações das transações realizadas a partir de janeiro de 2018.
Parágrafo único. As unidades federadas compartilharão entre si as informações provenientes dos arquivos que serão disponibilizados conforme leiaute previsto em Ato COTEPE/ICMS.
[2] Caput e incisos II, X, XII, LIV, LV, LVI e LXXIX do artigo 5º, ao inciso VI do artigo 22, ao inciso XIII do artigo 48, ao § 1º do artigo 145 e ao caput do artigo 192 da Constituição da República.
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